Thursday, June 08, 2006

1+1=3

Nando e Maria são amigos de infância. Conhecem-se a fundo, nos gostos, tiques e reveses da personalidade. São daquelas pessoas que comunicam sem usar palavras, para gáudio de mestres da telepatia e terror das operadoras móveis. Ambos pensam que foi essa cumplicidade que fez com que se juntassem.
Pela altura do Natal, passaram uma tarde de chuva em frente à praia, daquelas em que o vidro do carro se embacia e os corações se abrem. Deram as mãos, olharam-se nos olhos, e não demorou muito até que as suas bocas se tocassem num beijo intenso e prolongado que destilou a maresia e alterou o ciclo das marés. A armadilha da pele é assim, e eles não deviam ter deixado que o aroma dos seus poros se misturasse...
Ele não acredita no amor à primeira vista, mas na primeira vista do amor. Sentiu-se como peixe na água, uma vez que a convivência de ambos é velha. Já a tinha desejado anteriormente, e ela sentiu-o. Ela, também. Há muitos anos atrás. Perguntou-lhe se todos os seus beijos eram assim tão bons, já que este lhe tinha atingido a alma e elevado o espírito. Ele, disse-lhe que a tinha beijado com o coração.

Ela quis saber se o facto de ter um filho de outro homem não seria factor impeditivo de um grande amor. Ele respondeu que sim, mas que era fácil dar a volta à situação – teriam um filho um do outro, e estaria o problema resolvido. Encarar uma mulher com um filho alheio é complicado para um homem. É como comprar um veículo em renting – tem-se a chave na mão, utiliza-se o carro todos os dias, mas sabe-se que não é inteiramente nosso. Segundo outra perspectiva.. é como comprar um carro usado – a gente senta-se ao volante e vê marcas do antigo dono por todo o lado. Pronto. Por isso, foram para casa dela treinar, a testar até que ponto a fusão das suas fronteiras os poderia levar a uma propriedade comum. E correu tudo muito bem. Foram para casa felizes.

Passados uns dias, sem que o universo suspeitasse, ela disse-lhe que não. Valeu-se da falta de paixão, dizendo que a alma tinha gostado mas o corpo não tinha vibrado. Ele, sabia que havia outra pessoa pelo meio. Só se rejeitam relações quando há outro elemento em vista, é a lei praticada nos dias de hoje. E ela confirmou-a. Acabaram por se separar, sem haver pachorra da parte dele para passos periclitantes, e ela sem coragem para trocar o que tinha por coisa melhor.

Voltaram a encontrar-se meses depois, após muitas noites de ideias reelaboradas e dias de sol introspectivos. Ela, perguntou-lhe se ele ainda estava livre. Ele disse que sim - que se está sempre livre para quem se quer, mesmo que para isso seja preciso deixar quem se não quer. Ele, perguntou-lhe se ela ainda estava absorvida emocionalmente. Ela disse que não. Pelo outro. Por ele, sim. Que ele lhe ocupava definitivamente a cabeça.
Ponderaram na hipótese de viver um grande amor em vez de uma aproximação apaixonada. Não queriam romances de fachada ou uma relação fortuita, de interesse. Não tinham nada a mostrar, a não ser a eles próprios. Pensaram que poderiam valer-se da sua irmandade para construir com solidez sobre uma base perene. E acertaram. Então, partiram para uma viagem comum.

O amor nasce do companheirismo e da partilha de momentos em conjunto. Por isso os patrões gostam das secretárias, mesmo quando têm mulheres melhores em casa. Passam muito tempo com elas, é o problema. Ou a virtude...

Ela não é tudo o que ele deseja fisicamente. Ele, também não. Mas a partir de uma certa idade não são as curvas do corpo que contam mas as linhas rectas do espírito. E eles sabem que têm muitas que se cruzam entre si.

Voltaram a beijar-se. Ele, beijou-a da mesma maneira intensa. Demorou-se mais nos cantos da boca e nas arestas dos lábios, esses interruptores dos sentidos que provocam vibrações no peito e arrepios nos pés. Ela, voltou a gostar. Beijaram-se na boca, na cara e nas mãos. Estava provado o amor. Quem se beija aí, quer-se profundamente. Sentiram lufadas de ar de vida. Voltaram a treinar para o filho comum, voltou a correr bem. Perguntaram-se se não teria sido uma perda de tempo os meses que passaram longe um do outro, se é que se pode falar em desperdícios nestas coisas do amor – parafraseando o provérbio “a distância está para o amor como o vento para o fogo - quando o amor é grande, a distância atiça-o; quando é pequeno, apaga-o”. E eles, souberam que estavam a reabrir uma nova época de incêndios...

Diz Susana Tamaro no seu livro Vai onde te leva o coração, “não importa o tempo que se gasta a fazer pontaria...o importante é que quando se larga a seta, tenhamos a certeza que ela vai acertar no centro do alvo”. E Nando e Maria sentiram isso na pele quando desataram as suas mãos húmidas e molharam os lábios numa absorção final do cheiro e gosto um do outro. Enquanto limpavam o suor dos seus poros misturados, recompunham-se da leveza do peito provocada por palavras ditas ao ouvido anunciando sonhos comuns a cumprir por quem sente o ego maior de ter encontrado a sua alma gémea. E ambos gostaram de ouvir essas palavras. Não têm a mínima dúvida que sim. Nessa tarde, tinham sido... um mais um igual a três.

2 Comments:

At 6:33 am, Blogger RealSmile said...

palavras para quê se está tudo dito.. amei o texto..
***

 
At 10:34 am, Blogger Pierrot said...

Bonita citação essa da Susana Tamaro.
E é fantastico quando nos sentimos de tal forma embrenhados que passamos a ser 3 e não apenas a soma de 2 pessoas.
Boa
Abraço
Eugénio Rodrigues

 

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