Sunday, July 30, 2006

O vulcão

Bete e Alberto são um casal que nem sempre se dá muito bem. Ela, fala demais. Ele, fala demais. Ela gosta de música, livros e postais de amor. Ele, gosta do silêncio, filmes e motas. Ele, só pensa nela. Ela, não sabe muito bem no que pensa. Quando se casaram, ele jurou fidelidade com um sorriso nos lábios. Ela, fez figas atrás das costas para que esse fosse apenas o primeiro.
Ela limpa os espelhos com Ajax Cristal. Ele palita os dentes com a unha. O nome preferido dele é Salvador. Ela, não gosta de crianças. A última vez que lhe perguntou “Vamos ter um filho?”, ela respondeu: “Vai à vontade.”
Ela ignora os animais. Ele, comprou um rottweiler chamado Pyton. À noite, deita-se com um pé fora da cama. Ela, dorme em posição de múmia. Quando vai à casa de banho, ele deixa pingas na tampa da sanita. Ela limpa, e dobra a ponta do papel higiénico em bico. Uma vez perguntou-lhe “Será possível urinares sem mijar o chão?” Ele passou a urinar no lavatório. Demorou meses até que começasse a urinar sentado. Fê-lo porque ela o ameaçou com um garfo, e mesmo assim perguntou: “Sabes como isso vai afectar a minha masculinidade...?” Ela respondeu: “Até ver, a tua masculinidade chega-me.”
Quando conduz, ele dá as curvas em quinta. Estaciona a bater no passeio. Não protesta com ninguém. Ela, enerva-se com os peões e leva a mão à buzina. Quando vão em viagem, ele sai do carro e alivia-se contra as árvores. Ela, só consegue fazer na casa de banho. Aguenta-se firme até ao Algarve. Põe o braço de fora, e admira os homens que conduzem com duas mãos e puxam terceira a fundo. A masculinidade dele não lhe chega...
Ela, é formada em Literatura Moderna. Lê Genet e Villon. Ele, tem um curso técnico-profissional. Pega no Público frequentemente, mas para bater no cão. Ela lidera um projecto num instituto. Ele, é porteiro nesse instituto. Conheceu-a entre subidas e descidas de uma barra vermelha. Gosta de fazer barulho a comer a sopa. Ela, come esparguete de garfo e colher.
Ela fala com termos caros. Ele tem um vocabulário lúgubre. A palavra favorita dela é subrepticiamente. Ele, não sabe o que isso significa. Um dia, ela perguntou-lhe porque estava a esconder a cinza do cigarro com a almofada “subrepticiamente”. Ele respondeu-lhe “Ok, eu levo o cão lá fora...mas não chames essas coisas ao bicho.”
Ela, faz amor de maneira estática. Ele, faz a chamada no tapete e atira-se de braços abertos para a cama. Ela berra alto. Ele manda-a calar.
Ele gosta de morar num prédio. Calça os chinelos e tenta não fazer barulho. O sonho dela é uma vivenda. Vira a cara e não cumprimenta os vizinhos no elevador.
Quando vão ao shopping, ela aproveita os saldos. Adora teilleurs cintados com remates de macramé madrepérola. Ele, compra roupa por catálogo. Veste calças larguíssimas e camisas verdes às flores.
Ela, gosta de tomar banho de imersão e de experimentar perfumes. Ele, limpa as duas orelhas com uma cotonete só, e pede que lhe dêem packs de Vetiver nos anos. Ele gosta de lhe massajar os pés. Ela, também gosta que ele a massaje. Mas só aí. Gosta de miminhos, mas não de fazer amor. Ele adora. Fazer amor. Quando se deitam, jogam ao jogo das palavras. Ela diz uma letra, e ele adivinha o sítio onde a vai beijar. “...B...” e ele beija a barriga. “...P...”, e ele beija o pescoço. Outro dia, fizeram amor com a RTP1 ligada. Naquelas aulas de Português rápido, o locutor pergunta a letra com que se escreve “fuligem”. Ela, excitada, mas com um olho na televisão, grita alto: “...G!!...G!!” O homem lança-se à procura do famigerado ponto. Ela fá-lo parar imediatamente. Nesse momento, toca o telemóvel. Ficam-se por ali. Quem ligou não interessa. Já foi dito que a masculinidade dele não lhe chega...
Ele diz palavrões para chegar ao orgasmo. Ela, chama-lhe vulcão quando as coisas aquecem. Baixinho. Mas nunca chega à erupção.
Ela dá um valor extremo à família. Na altura das festas, gasta dinheiro em prendas e postais natalícios. Ele, mudou-se para a cidade aos quinze anos e não sabe dos pais. No Natal, poupa dinheiro e dá os packs de Vetiver que lhe sobram.

Mais tarde, ela disse-lhe ter sentido um arrepio quando ele lhe tocou no ponto. Ele, não quis saber. Jurou nunca mais fazer amor com a televisão ligada.

Bete e Alberto não nasceram para se dar bem. Vivem, mas não convivem. Já pensaram em aventurar-se noutras relações e colmatar vazios com outros seres imperfeitos. No entanto, mantêm o casamento de oito anos intacto. Como um fala demais, e o outro também, olham-se nos olhos e sentam-se na cama a conversar cada vez que os espíritos azedam. Eles sabem que a comunicação é a base de qualquer relação, e nesse ponto ( "desliga a televisão, senão não te toco aí..."), estão os dois perfeitamente de acordo.

6 Comments:

At 2:43 pm, Anonymous Anonymous said...

"Histórias do prédio ao lado" que vividas do lado de cá :) Adorei... um autêntico vulcão!!!! MSM :)

 
At 2:57 am, Blogger Sonia Martins said...

Um vasto texto dedicado às massas,um hino ao acordar?Ou uma marcha fúnebre que no silêncio dos instrumentos grita desaprovação entre cada dedada lançada em cada nota?

Shakespeare tem razão e tu sabe-lo:

"O tempo é muito lento para os que esperam,

muito rápido para os que têm medo,

muito longo para os que lamentam,

muito curto para os que festejam.

Mas para os que amam, o tempo é eternidade"

Beijo..............

 
At 4:52 pm, Blogger RealSmile said...

Típica história de amor.. ou não :p
Beijinhu

 
At 5:29 pm, Blogger salamandra said...

foi entre um sorriso e alguma precaução que fui atravessando as tuas palavras.
ás vezes gosto de chamar "concuspiciente" ao que é apenas "preverso". Se calhar é mesmo só isso...sinónimo.
Encaminhaste-me até aqui...e vou regressar.

 
At 10:09 pm, Anonymous Anonymous said...

Very nice site! »

 
At 6:59 am, Blogger João Miguel Correia said...

é verdade... tem de utilizar taticas á Mourinho!
abraço

 

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