Monday, November 20, 2006

A falta que faz a falta

João é um aluno meu que tem aulas comigo numa sala que não a minha. Brinca no recreio entre os amigos com o automatismo dos pássaros que atravessam continentes alinhados à procura do calor, mas sem nunca tomar a dianteira. Entra na sala de aula incógnito, pousa a pasta e senta-se na carteira entre considerações sobre os desenhos que as nuvens descrevem no céu e as colunas de gaivotas que persegue com os olhos na janela . Na verdade, tudo para o João é mais interessante do que o que se passa na sala de aula ou do que o professor diz.
Lembro-me de no dia das matrículas os pais dizerem: “Olhe que o João é bom aluno, mas tem andado distraído…” Posteriormente, perguntei-lhes o porquê de tamanha abstracção, ao que a mãe respondeu: “Sabe, o João tem um mundo muito próprio.” Sim, um mundo muito próprio – pensei eu - confirmando que em matéria de imprecisão a criança tinha bem a quem sair.

Outro dia perdi a paciência com o João. Treinávamos o raciocínio periférico fazendo contas em Inglês, e ele levava vinte minutos para resolver duas contas de somar. Gasto pelo cansaço, elevei a voz a níveis que normalmente evito. O João encolheu-se. Os amigos riram-se. Envergonhado, voltou o rosto. Pousou a caneta na mesa e fixou os losângulos do chão. Senti-o bloquear. Então, decidi falar sobre coisas que não a escola:
“João, o que faz o teu pai?
-É porteiro de uma empresa, professor...
-E a tua mãe?
-Trabalha numa seguradora.
-Dão-se bem, o teu pai e a tua mãe?
-Mais ou menos. Os meus pais estão a separar-se...
-Ah sim? – disse eu -E tu, como te sentes em relação a isso?
-Não sei bem como dizer, professor…mas acho que estou triste.”


Claro...os pais do João estavam a separar-se.


Já não haviam risos na sala. As poucas palavras do João tinham sido suficientes para transmitir aos colegas a escuridão com que encara os dias. Afastei-me silencioso, a pensar na força absurda que os problemas dos pais exercem ilegitimamente sobre os filhos. Como seria bom se houvesse uma fórmula que abstraísse as crianças dos resultados das opções dos pais e as tornasse imunes ao sofrimento... Mas não há. E o João é um exemplo disso.

-“Professor – perguntou o João - quando duas pessoas se separam significa que já não gostam uma da outra?
-Não necessariamente – disse-lhe eu. Isso pode acontecer por várias razões.
-Quais? – perguntou ele, curioso.
-Algumas pessoas dão-se mal e decidem-se afastar-se. Outras, encontram uma pessoa de quem gostam mais e iniciam uma nova relação. Depende.
-Então… quer dizer que se essa pessoa encontrar outra pessoa de quem goste mais ainda, separa-se novamente?
-Por vezes acontece, João...mas não necessariamente."
Começava a sentir-me impotente na tarefa de elucidar uma criança sobre as encruzilhadas da vida que os próprios adultos desconhecem. O aluno estava confuso...
-“Sabe professor... só não sei é porque não me deixam ficar com o meu pai. Dava-me melhor com ele do que com a minha mãe...
-Isso não é escolha dos teus pais, João – respondi eu.
-Então, professor?
-É a Justiça.
-Justiça? Que é isso?”

Tentei explicar o melhor que pude, valendo-me de técnicas pedagógicas e outras teorias que jamais farão frente à simplicidade de qualquer pergunta infantil.

-“Justiça, João...é uma sala com muitos papéis empilhados e alguns senhores de ar sério lá dentro. Nesses papéis estão escritas leis, e esses senhores usam as leis para orientar a nossa vida. O problema, é que raramente essas leis estão de acordo com a nossa vontade. Como neste caso - são eles que decidem com quem vais ficar. Se fosse possível tu ou os teus pais escolher, com certeza te deixariam ficar com o teu pai.
Mas não te preocupes – disse eu – ele irá ver-te muitas vezes, vais continuar a estar com o teu pai como tens feito até agora!
-Eu sei, professor. Ontem os meus pais tiveram uma conversa comigo e explicaram-me isso tudo. Fico um fim-de-semana com um, outro fim-de-semana com outro…”


Os olhos do João voltaram a fixar o caderno imóvel onde algumas contas esperavam impacientes para ser resolvidas. Constrangido pelas palavras do aluno, não insisti para que as resolvesse.

Os dias passaram, e eu fui vendo o João regularmente.

Hoje o João teve aula comigo às 14:30. Entrou na sala mais calado do que nunca. Sentou-se na cadeira pausadamente, os olhos sem energia para se demorar no mundo externo. Esperei alguns minutos para que retirasse os livros da pasta. Não retirou. Aproximei-me dele e curvei-me sobre a mesa. Ele fixava ansiosamente o chão enquanto entrelaçava os dedos em complicados nós de marinheiro. Tinha os olhos vidrados, como quem se esforça para conter as lágrimas de uma dor interna que se vê mas não se pode ouvir. Mas levantou a cabeça decidido:
-“Professor, os meus pais foram agora separar-se.
-Como sabes disso, João?
-Eles disseram que iam lá abaixo a Matosinhos, à sala de papéis empilhados e senhores sérios que o professor falou outro dia.
-Ok, João. Eles não demoram.
-Tu, como te sentes? Estás bem?
-Não sei bem como dizer, professor…mas acho que estou triste...”


E, voltando o rosto, deixou cair uma lágrima sobre a mesa em que devia estar um caderno onde, para além da matéria e dos sumários o João escreve juras de amor eterno com corações atravessados por setas onde de um lado figura o nome dele e do outro o de raparigas que não sabe muito bem se vale a pena amar...