Tuesday, May 16, 2006

Aquela pessoa.

Outro dia estava a cozinhar, a ver o vapor dos tachos subir, quando me passaram algumas coisas pela cabaça. ( Cabeça, desculpem. )
Certa vez ouvi dizer que mesmo na atribuição dos castigos a Adão e Eva depois do pecado original, Deus foi amigo deles. Ao homem, físicamente forte e robusto, foi dito que "comeria o pão da terra com o suor do seu rosto". À mulher, mais resistente à dor e sofrimento, foi dito que "com dor conceberia os seus filhos." Ou seja, atribuições justas mediante as capacidades de cada um.
Acredito e confirmo isto cada vez que me aproximo de um fogão. Quanto mais olho para eles, mais os considero máquinas adaptadas às mulheres. Não estou a querer ter uma atitude machista, puxa...vocês não me conhecem. Há tarefas domésticas que acho simpáticas e até faço com alguma vontade, mas cozinhar, a sério... é coisa que não me cheira. Não consigo. Não gosto de tachos nem ao longe nem à distância. A proximidade de panelas fumegantes e cafeteiras esfuziantes parece-me, cada vez mais, tarefa reservada apenas a um ser capaz de parir por um sítio por onde normalmente saem esguichos de bisnaga. Elas têm coragem...eu, tenho medo. Não que haja pouco gosto ou vontade em lidar com alimentos ou vegetais...não, não é isso. Sigo e admiro grandes mestres da culinária do sexo masculino, e gabo-lhes fervorosamente os dotes. O problema está na tortura e aflição que o acto de ligar um disco representa. Para mim, a proximidade de um garfo entre os meus dedos e 2 dl de óleo a ferver é uma verdadeira aventura. Um exercício de dor. Pôr massa, arroz ou puré dentro de àgua em ebulição, semelhante a malabarismo com fogo. Arrepia-me, pronto. Escorrer um panado, gratinar filetes ou virar um rissol, é caminhar sobre brasas quentes - a gente sabe que se vai queimar não tarda nada, é tudo uma questão de psicologia. O perigo aumenta quando o material a lidar vem congelado. Atirar um pastel de bacalhau coberto de cristais de gelo para dentro duma frigideira é calcar a cauda ao dragão do Shreck. Aquilo espicha tudo! Pior que atravessar entre dois prédios por uma corda esticada: a queda é certa, e não há espectadores atentos de cabeça esticada a testemunhar queimaduras de segundo grau.

Mas não era isto que queria dizer...

Sempre tive medo do fogo, pois. Quando era pequeno ia ao circo pelos animais. Agradava-me a obediência das focas e a submissão aparente dos leões. Fugia, no entanto, de cabelo arrepiado e poros arreganhados quando aparecia um homem a largar labaredas no ar com a força do seu bafo inflamável. De início, fazia-me confusão haver um dragão em todos os circos, estivesse ele no Porto, Aveiro, Coimbra ou até Lisboa. Mas não gostava deste homem. Batia palmas com as focas, ria-me com os palhaços, ia para casa satisfeito com a mente cheia de cores, risos e balões, mas com o lança chamas a povoar-me a mente num turbilhão de labaredas letais. À noite, pensava a sua vida ingrata, imaginando a sua relação tortuosa com a menina contursionista ( essa que, por acaso, gostava..), com ele, em brados incandescentes, a repetir vezes sem conta que a amava, e ela a desdobrar-se em manobras impossíveis a tentar fugir do seu hálito acetonado. A verdade é que o espectro desse personagem não me largava tão cedo...

Mas não era isto que queria dizer.

Enquanto via o vapor subir, reparei a rapidez com que ele se tranformava em água quando tocava o metal do exaustor por cima da minha cabeça. Também notei o instante em que pingas de água se transformavam em fumo ao cair dos testos cambaleantes. O frio da placa do exaustor e o quente do disco em brasa provocavam uma reacção automática na água que me fez pensar no dom de transformação de vidas que algumas pessoas têm. Já passaram algumas dessas na minha vida...não muitas, porque são espécimens raros. Pessoas que ao mínimo contacto nos transformam, alteram o nosso estado natural, como as gotas de água depois de tocar o disco quente ou o metal frio do exaustor. São pessoas dotadas, essas, e guardo-as de tal forma no coração que não haverá tempo ou viagem que as apague da minha memória. Simplesmente porque mudaram a minha vida. Pessoas que me fizeram ponderar numa resposta antes de a lançar boca fora, me impediram de dar um passo antes de me estatelar, alteraram o curso do meu dia antes de ele acabar, ou simplesmente me fizeram olhar para uma coisa sob outra perspectiva. Admiro Sócrates, Jesus Cristo, Ghandi, por isso mesmo. Ou mesmo algum amigo recente que me fez ser outra pessoa. Gente que por vezes leva marcas, mas que também sabe marcar. Como os tentáculos de uma medusa, que nos passam no corpo e não o deixam igual.
O meu sonho era vir a ser uma pessoa assim. Ouvir alguém dizer: "Tu tocaste-me, por tua causa a minha vida agora é diferente!" Adorava poder alcançar o fundo do ser de alguém, ver um conselho meu transformado em decisão, apreciar um aluno a subir à carteira a gritar "Oh captain my captain!", numa atitude de subserviência extasiada. Apesar das semelhanças, isto não seria um filme...porque tocar vidas no fundo não é ficção, é o resultado de uma acção e trabalho bem concretos, fruto de uma capacidade que nem todos têm, de uma arte e magia reservadas apenas a uma ou outra pessoa, talvez...aquela pessoa.


Sim, e era isto que queria dizer...

Thursday, May 11, 2006

Serena consciência de existir.

A serena consciência de existir... ( 28/06/98 )

Hoje, vendi-me ao vazio...
Espraiei-me na amplitude do quarto onde acordei,
Bebi um raio de luz, e voltei a dormir,
Rendido ao impulso do sono que sinto,
Quotidianamente, o mesmo.
Ontem, um responsável por mim partiu ( para sempre? )
Subtraiu-se a um mundo de seres de perder a conta,
Incondicionalmente,
E pegou-me o sentido de vida ( ou de morte...)
Actual...

.............
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Ouso um suspiro – movimento imenso,
Desafio enorme a esta lei de inércia que monótonamente confirmo,
Sou eu mesmo,
Renovando o ar que insistentemente inspiro,
Expiro, inspiro,
Outra vez, e outra vez igual...

.................
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Deslizo um pedaço, movimento de ilusão,
Pois energia e um corpo andante são
Tropelias de forças vivas e sonhos novos
De outros projectos que não os meus...


E o dia corre...
E a manhã brilha...

E pela janela entra uma fatia de luz oblíqua,
Que me convida à vida, e eu ignoro
Indiferente ao sol e à sua influência alternativa...


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Que farei hoje? Serei alguém?
Não sei o que tenho...
Sinto-me eu, menos eu do que nunca...
( resta-me o som das plantas, que comigo crescem,
solidariamente alheias aos meus pormenores íntimos,
cúmplices das sombras que no tecto projecto e enormes,
recuso serem minhas...)

Não sei o que tenho...
( este sentido explico-o porque hoje é Domingo,
dia que se repete todos os dias no nome de
outro dia qualquer...)

Hoje faço 24 anos. Sem o pedir. Indefeso.
Rendido às marés que aceleram...

Detesto o tempo...

Tuesday, May 09, 2006

A primeira vez.

“Quando foi a ultima vez que fizeste algo pela primeira vez?”
Detesto esta frase. Ouço-a vezes sem conta, repetida em emails, locuções de rádio e rodapés de revistas, como a voz de um amigo afastado que de repente se lembrou de nós e decidiu expressar cuidados. Ainda que discreta, quer meter-se na nossa vida. É uma frase que entrou na sociedade. Pretende medir-nos o ímpeto e os níveis de radicalidade. Isso mesmo. É uma frase que vai bem com a palavra "radical". Disfarçadamente, manda-nos levantar o cú da cadeira e aventurar-nos em cordas e desfiladeiros de emoção. Há mesmo quem se atreva a dizer que se não experimentamos coisas novas todos os dias, é porque estamos a ficar velhos. Como se dormir numa tarde de Domigo em vez de irmos encharcar-nos num bote de rafting nos confins das águas de um rio nos pusesse uma década nos ombros... Eu não concordo.

Por acaso eu gosto de aventura. Sei o que é cannyoning e rappel australiano. Já fiz paintball e levei com uma "ball" num olho. Já entrei em grutas e mergulhei nas rochas. Já estudei epistemologia e entreguei o IRS numa repartição das finanças. Mas confesso que esta frase me tem incomodado...
Então decidi aumentar os níveis de adrenalina. Senti que era preciso agir.
Podia ter desafiado a gravidade, saltar em bungee-jumping ou atirar-me de um avião. Podia ter experimentado kite-surf, long-surf, ou tele-surf. Podia ter-me inscrito em parapente, asa delta ou outras manobras aéreas que tantas escolas e sites prometem. Mas não. Decidi abrir um blog...
Abrir um blog não é lá grande coisa. Ou melhor, não é grande acontecimento. Hoje em dia, toda a gente abre um blog. Não é preciso pagar, os pais não assinam, nem é preciso abanar nem seguir o livro de instruções. Muito mais fácil que pedir aos pais para sair quando temos dezoito anos. A gente inscreve-se, e depois tem-se.
O que me chateia nos blogs é a ausência de abstracção. A malta escreve, mas pede sempre algo em troca. E não estou a falar de apoio no estilo ou cuidados literários. Não. Estou a falar do desejo de feed-back, da sede de respostas e comentários aprovadores que os bloggers esperam e pelos quais quase sempre desesperam. Se bem que o despejo das profundezas da alma seja algo de comum nos blogs( em que se ignoram regras ou fronteiras dos limites de bom senso ) , as linhas aprovadoras de amigos extasiados é coisa que ninguém dispensa. Confunde-se o gosto da criação pessoal com o entusiasmo da admiração colectiva.
Pois eu tentarei escrever pelo gosto da escrita. Gostava de poder ignorar a necessidade de afirmação ( que também tenho, pois claro...). Não queria depender de ânsias de feed-back, ter sede de comentários ou outros reconhecimentos que alimentam o ego. Farei deste blog o meu diário digital, em que entro devagarinho evitando calcar a esponja da atenção alheia. Porque um blog é um acto de satisfação e não um exercício de compensação. No fundo, gostava que este fosse...apenas o meu cantinho. Até..porque não mereço muito mais do que isso.
Será possível? A ver vamos.